O episódio recente da Ministra Damares sobre ter
visto a Virgem num pé de goiaba suscita este artigo,que resume algumas das
reflexões que tenho feito ao longo destes anos todos sobre a relações com a
Igreja Católica,superstição, iluminismo e outros temas.
E para ter um ponto de partida eu relembro a
questão das aparições de Fátima que têm a ver com isso ai.
Todos sabem do meu espirito crítico em relação ao iluminismo(e ao cristianismo também).Eu não
o rejeito,o que faço é limitá-lo pelo corpo.Em nome do Iluminismo também se
cometeram crimes contra a religião,não importa se menos ou mais do que as da
religião contra a humanidade.
Os dois lados cometeram crimes ,pelos mais diversos
motivos e boas intenções.
No entanto,escolhi estas aparições não só pelo que
disse acima,mas igualmente porque elas são um ponto decisivo destes conflitos
históricos entre a “ Razão” e a “ Religião”.
A ideologia da razão sempre propagou a sua
preeminência quanto à obtenção da verdade,deixando a nefanda superstição para a
religião.A descoberta da causa das coisas eliminaria o domínio religioso sobre
os corações e mentes ,o que o levaria ao
(desejado[condição de progresso da humanidade])fenecimento.
Isto é parte dos séculos XVIII e XIX,mas como já
ensinei,com a contribuição de Freud e
sua recuperação do papel gnosiológico da superstição,na questão dos
sonhos,este ruído Religião/Razão é que feneceu,em
termos.
Não é que Fátima tenha significado um reflexo de
Freud,mas se insere no problema do reconhecimento de que tal dicotomia não
serve para nada,já que não tem fundamento real.
As aparições de Fátima,com os segredos da Virgem,
marcam a virada quanto ao problema da
dicotomia verdadeiro/falso,que teve repercussões na ideologia.Ainda que se
possa ser cético quanto a fantasmagorias deste tipo,o que importa,para o
supersticioso ou “ racionais”,é o
significado embutido em toda narrativa e em toda,principalmente,não-narrativa,o
mistério .
Estes segredos foram guardados,parcialmente
revelados,pelos Papas até João Paulo II,que os teria exposto.Nem me lembro o
que foram,mas ao longo dos últimos cem anos esta discussão perpassou
gerações,interessadas no mistério .
A Razão iluminista propagou a idéia de eliminar o
mistério,pela inquebrantável certeza,obtida pelo esforço científico.O esforço
científico,não a superstição,cria o bem-estar para todos.
Mas a história demonstrou que a razão também
reprimiu ,em nome dela própria e em nome do progresso,tanto quanto a
Inquisição,ou pelo menos,dentro de uma proporção inadmissível para quem buscava
uma forma de utopia.A utopia da Razão.
Por um processo internamente contraditório a
ela,admitir que a Razão ,eventualmente,não pudesse descobrir a verdade ,era
permitir o recrudescimento da superstição.A Razão universal era,por isto mesmo,própria
da humanidade,ninguém dela sendo excluído.O conhecimento era e é de todos.A
superstição era uma forma de manipulação da ignorância humana.
Contudo,por diversos motivos, a razão não se
apresenta diretamente a todos.Se a
esperança se espalha pelas pessoas comuns,que podem agora deixar de lado os
véus místicos da realidade e constituir o seu caminho,as realizações(crematística)não
são imediatas e nem garantidas.A Razão é um projeto,não uma realidade.Ela é
como a dialética da natureza,um modelo de explicação que não se explica a si
mesmo.A infinitude do universo não corresponde à da Razão,pois esta precisa de
limites,precisa se auto-limitar(como o Estado[Jellinek]).E precisa porque senão
perde o sentido(sentido é limite).
Muitos anos atrás um pensador defendeu a ideía de
conhecer o conhecimento,mas conhecer o conhecimento e formar um conhecimento do
conhecimento,permite formar outro,o conhecimento do conhecimento do
conhecimento,e assim sucessivamente.O que é absurdo.É o princípio weberiano da carruagem .
A Razão,como toda proponência,para ser válida, deve
provar que os seus critérios são efetivos para ela própria.A razão que explica
o mundo explica a ela própria.Ela é um problema em si.A continuidade infinita
de perguntas foge desta verdade e abdica da delimitação inevitável e essencial
no processo de conhecimento.
É por isto que diz-se que a dúvida racional
cartesiana é fictícia,enquanto que a dúvida dos céticos e estóicos é real e
periga ,sem paradigmas,cair no suicídio.Dúvida fictícia é aquela que sabe da
existência do mundo, do real,mas questiona os seus limites.Em Descartes já
existe um Kant.Nas “ Meditações Metafísicas” o exemplo de Descartes anuncia
Kant:uma vela vai se dissolvendo e se torna uma outra coisa e depois
outra(liquido) e se junta a outros materiais.Descartes sabia que se colocasse a
mão na vela,na chama, se queimaria,mas usou
o exemplo para mostrar que a razão não abarca o mundo e que a única
certeza é esta razão questionadora.
Mas não questionou a Razão.E nem poderia,porque a
Razão,na sua definição,é algo fechado.Mas a Razão faz parte do mundo que busca
compreender e ,no tempo,se modifica na medida em que o compreende.A Razão que compreende,num
momento,a realidade,em seus aspectos específicos(vela)é outra quando conhece
outras coisas.E mais:a obrigação de conhecer é tão questionável quanto não conhecer(superstição[ignorância]).Porque
não é possível conhecer tudo.A constatação do movimento real das coisas,que
acompanha o iluminismo,pôs,aos poucos,estas certezas em xeque.Isto sem falar no
corpo,que atua.A razão,como busca(tempo[movimento]) de causa e efeito, é algo
mais do que ela própria e sendo isto modifica-se(tempo[movimento]),como razão,na sua luta pelo conhecimento.A Razão
se dissolve e se recompõe permanentemente e se ilude na sua inteireza ou
integridade(Iluminismo).
Eu já citei em outro artigo a dicotomia de Hegel
entre religião popular e teologia,que ele analisa e que é objeto de um livro de
Habermas “O Discurso Filosófico da Modernidade”:o tempo é o corpo que se
desenvolve,que se corrompe,que desaparece e que ,por causa disto,incide,como
problema,na existência humana e até a cria.
Tanto os cristãos,como os românticos e artistas em
geral,se vingaram um pouco do cientificismo da Revolução Francesa,mostrando estas fissuras da
Razão,que,inclusive,no entender deles(acertadamente)era a razão pela qual a Revolução fracassara(ou o
contrário[dialeticamente falando...]).
Entre a causa e
o efeito há algo mais decisivo,socrático:o não-saber ,a ignorância ,que
é mais fonte do saber do que a Razão,pois esta não busca o conhecimento senão
porque não o tem.A ignorância punida pela inquisição carregava em si mais possibilidades
do que o Iluminismo,que ,no fundo,é não-tempo.
Neste período que vai do século XVIII ate ao
romantismo percebe-se claramente que a ciência vira as costas à filosofia,à
experiência dos povos,passada,erro fatal,com consequências terríveis,para a
humanidade e para a utopia da razão.
Mistério ,ignorância ,não-saber e superstição são
elementos inevitáveis da falibilidade humana,que,muitas vezes,se manifesta e
reproduz na credulidade dos homens,algo menos letal do que a certeza.
Muitos artigos atrás ,criticando um jumento de
esquerda,eu relembrei uma passagem da vida de Marx em que ele era interrogado
pelas filhas,quanto aos seus gostos principais e ,lá pelas tantas,quando elas
lhe perguntam sobre o defeito mais admissível da humanidade ,ele responde:”
credulidade”.
A credulidade dos camponeses portugueses ao verem a
imagem da Virgem pode significar muitas
coisas,muitos problemas,mas o seu aspecto de
credulidade não autoriza a reação repressiva e preconceituosa que
ocorreu naquele então,por parte das autoridades,eivadas de iluminismo.
Em primeiro lugar é preciso entender o contexto em
que estas visões se deram.O camponês português estava sendo usado para constituir uma força militar que deveria lutar na primeira guerra mundial.Esta
manipulação do camponês consagrava partes dos preconceitos atinentes ao
iluminismo,que sempre preferira a
indústria ao campo.
Os filósofos deploravam o atraso do campo e o
acusavam de impedir o avanço da humanidade.O mesmo Marx se referia
frequentemente ao cretinismo do campo e muitos comunistas ao cretinismo do
camponês polaco e de outras regiões da Europa.Mas não só os comunistas:certas
correntes republicanas,muito em voga em Portugal.
Em termos políticos e sociológicos a visão da
Virgem foi uma forma de criar uma agitação capaz de atrasar esta ilegítima
intenção do governo português.O preconceito com o camponês permitia,aos olhos
do governo,encontar um meio de eliminá-lo,com pompas militares.
Do ponto de vista filosófico e ético significou
mais uma afirmação daquilo que eu disse acima,junto com Freud e
outros(Kierkegaard):que o mistério ,o
não-saber ,a ignorância ,a superstição são mais ricos do que a Razão,até porque sem
eles não se busca o conhecimento.
A questão ética e politica da afirmação da ministra
é um caso à parte.Mas dentro de uma escala de possibilidades implica numa constatação que muita gente da
esquerda não entende:a democracia vale também para a Igreja Católica;o estado
de direito também e que é um pouco forçado culpá-la de tudo o que há de ruim.
Eu adoro meu mestre Leonardo Boff e reconheço que
muitas das suas críticas à Igreja Católica são válidas,mas assiste razão ao
Cardeal Ratzinger em dizer a ele e à teologia da libertação:Se não querem mais
ficar na Igreja ,fundem outra religião.Não quero dizer que Boff tenha feito
isto,mas é fácil conseguir um nome provocando a Igreja.
A minha ética aqui nestes artigos é produzir um
conhecimento,não um nome a partir de um escândalo.Fiz e vou fazer muitas
críticas à Igreja e a tudo o que houver para criticar,mas o nome que eu
adquirir derivará do valor do que eu produzo,não do escândalo.
Por acaso só existe pedofilia na Igreja?.Só o
catolicismo comete erros e crimes?.
O que a esquerda não entende é que ao atacar a
Igreja supõe que a Razão,pela sua verdade,será
capaz de diluir todo o seu mau exemplo,mas a Igreja é um sexto da humanidade e
já demonstrou aptidão excepcional para reagir.
Se alguns aí passassem da orelha do “ Capital”,nós
não passaríamos por isto.Ninguém tem certeza de nada,o mistério é inerente à
existência humana e uma sua condição.Nem a razão tem a condição absoluta da
certeza.