segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

O pé de goiaba


O episódio recente da Ministra Damares sobre ter visto a Virgem num pé de goiaba suscita este artigo,que resume algumas das reflexões que tenho feito ao longo destes anos todos sobre a relações com a Igreja Católica,superstição, iluminismo e outros temas.
E para ter um ponto de partida eu relembro a questão das aparições de Fátima que têm a ver com isso ai.
Todos sabem do meu espirito crítico em  relação  ao iluminismo(e ao cristianismo também).Eu não o rejeito,o que faço é limitá-lo pelo corpo.Em nome do Iluminismo também se cometeram crimes contra a religião,não importa se menos ou mais do que as da religião contra a humanidade.
Os dois lados cometeram crimes ,pelos mais diversos motivos e boas intenções.
No entanto,escolhi estas aparições não só pelo que disse acima,mas igualmente porque elas são um ponto decisivo destes conflitos históricos entre a “ Razão” e a “ Religião”.
A ideologia da razão sempre propagou a sua preeminência quanto à obtenção da verdade,deixando a nefanda superstição para a religião.A descoberta da causa das coisas eliminaria o domínio religioso sobre os corações e mentes ,o que o levaria  ao (desejado[condição de progresso da humanidade])fenecimento.
Isto é parte dos séculos XVIII e XIX,mas como já ensinei,com  a contribuição de Freud e sua recuperação do papel gnosiológico da superstição,na questão dos sonhos,este  ruído Religião/Razão é que feneceu,em termos.
Não é que Fátima tenha significado um reflexo de Freud,mas se insere no problema do reconhecimento de que tal dicotomia não serve para nada,já que não tem fundamento real.
As aparições de Fátima,com os segredos da Virgem, marcam a virada  quanto ao problema da dicotomia verdadeiro/falso,que teve repercussões na ideologia.Ainda que se possa ser cético quanto a fantasmagorias deste tipo,o que importa,para o supersticioso ou  “ racionais”,é o significado embutido em toda narrativa e em toda,principalmente,não-narrativa,o mistério .
Estes segredos foram guardados,parcialmente revelados,pelos Papas até João Paulo II,que os teria exposto.Nem me lembro o que foram,mas ao longo dos últimos cem anos esta discussão perpassou gerações,interessadas no  mistério .
A Razão iluminista propagou a idéia de eliminar o mistério,pela inquebrantável certeza,obtida pelo esforço científico.O esforço científico,não a superstição,cria o bem-estar para todos.
Mas a história demonstrou que a razão também reprimiu ,em nome dela própria e em nome do progresso,tanto quanto a Inquisição,ou pelo menos,dentro de uma proporção inadmissível para quem buscava uma forma de utopia.A utopia da Razão.
Por um processo internamente contraditório a ela,admitir que a Razão ,eventualmente,não pudesse descobrir a verdade ,era permitir o recrudescimento da superstição.A Razão universal era,por isto mesmo,própria da humanidade,ninguém dela sendo excluído.O conhecimento era e é de todos.A superstição era uma forma de manipulação da ignorância humana.
Contudo,por diversos motivos, a razão não se apresenta diretamente a todos.Se  a esperança se espalha pelas pessoas comuns,que podem agora deixar de lado os véus místicos da realidade e constituir o seu caminho,as realizações(crematística)não são imediatas e nem garantidas.A Razão é um projeto,não uma realidade.Ela é como a dialética da natureza,um modelo de explicação que não se explica a si mesmo.A infinitude do universo não corresponde à da Razão,pois esta precisa de limites,precisa se auto-limitar(como o Estado[Jellinek]).E precisa porque senão perde o sentido(sentido é limite).
Muitos anos atrás um pensador defendeu a ideía de conhecer o conhecimento,mas conhecer o conhecimento e formar um conhecimento do conhecimento,permite formar outro,o conhecimento do conhecimento do conhecimento,e assim sucessivamente.O que é absurdo.É o princípio weberiano da  carruagem .
A Razão,como toda proponência,para ser válida, deve provar que os seus critérios são efetivos para ela própria.A razão que explica o mundo explica a ela própria.Ela é um problema em si.A continuidade infinita de perguntas foge desta verdade e abdica da delimitação inevitável e essencial no processo de conhecimento.
É por isto que diz-se que a dúvida racional cartesiana é fictícia,enquanto que a dúvida dos céticos e estóicos é real e periga ,sem paradigmas,cair no suicídio.Dúvida fictícia é aquela que sabe da existência do mundo, do real,mas questiona os seus limites.Em Descartes já existe um Kant.Nas “ Meditações Metafísicas” o exemplo de Descartes anuncia Kant:uma vela vai se dissolvendo e se torna uma outra coisa e depois outra(liquido) e se junta a outros materiais.Descartes sabia que se colocasse a mão na vela,na chama, se queimaria,mas usou  o exemplo para mostrar que a razão não abarca o mundo e que a única certeza é esta razão questionadora.
Mas não questionou a Razão.E nem poderia,porque a Razão,na sua definição,é algo fechado.Mas a Razão faz parte do mundo que busca compreender e ,no tempo,se modifica na medida em que  o compreende.A Razão que compreende,num momento,a realidade,em seus aspectos específicos(vela)é outra quando conhece outras coisas.E mais:a obrigação de conhecer é tão questionável quanto  não conhecer(superstição[ignorância]).Porque não é possível conhecer tudo.A constatação do movimento real das coisas,que acompanha o iluminismo,pôs,aos poucos,estas certezas em xeque.Isto sem falar no corpo,que atua.A razão,como busca(tempo[movimento]) de causa e efeito, é algo mais do que ela própria e sendo isto modifica-se(tempo[movimento]),como  razão,na sua luta pelo conhecimento.A Razão se dissolve e se recompõe permanentemente e se ilude na sua inteireza ou integridade(Iluminismo).
Eu já citei em outro artigo a dicotomia de Hegel entre religião popular e teologia,que ele analisa e que é objeto de um livro de Habermas “O Discurso Filosófico da Modernidade”:o tempo é o corpo que se desenvolve,que se corrompe,que desaparece e que ,por causa disto,incide,como problema,na existência humana e até a cria.
Tanto os cristãos,como os românticos e artistas em geral,se vingaram um pouco do cientificismo da Revolução  Francesa,mostrando estas fissuras da Razão,que,inclusive,no entender deles(acertadamente)era a  razão pela qual a Revolução fracassara(ou o contrário[dialeticamente falando...]).
Entre a causa e  o efeito há algo mais decisivo,socrático:o  não-saber ,a ignorância ,que é mais fonte do saber do que a Razão,pois esta não busca o conhecimento senão porque não o tem.A ignorância punida pela inquisição carregava em si mais possibilidades do que o Iluminismo,que ,no fundo,é não-tempo.
Neste período que vai do século XVIII ate ao romantismo percebe-se claramente que a ciência vira as costas à filosofia,à experiência dos povos,passada,erro fatal,com consequências terríveis,para a humanidade e para a utopia da razão.
Mistério ,ignorância ,não-saber  e superstição são elementos inevitáveis da falibilidade humana,que,muitas vezes,se manifesta e reproduz na credulidade dos homens,algo menos letal do que a certeza.
Muitos artigos atrás ,criticando um jumento de esquerda,eu relembrei uma passagem da vida de Marx em que ele era interrogado pelas filhas,quanto aos seus gostos principais e ,lá pelas tantas,quando elas lhe perguntam sobre o defeito mais admissível da humanidade ,ele responde:” credulidade”.
A credulidade dos camponeses portugueses ao verem a imagem da Virgem pode significar  muitas coisas,muitos problemas,mas o seu aspecto de  credulidade não autoriza a reação repressiva e preconceituosa que ocorreu naquele então,por parte das autoridades,eivadas de iluminismo.
Em primeiro lugar é preciso entender o contexto em que estas visões se deram.O camponês português estava sendo  usado para constituir uma força militar  que deveria lutar na primeira guerra mundial.Esta manipulação do camponês consagrava partes dos preconceitos atinentes ao iluminismo,que sempre preferira  a indústria ao campo.
Os filósofos deploravam o atraso do campo e o acusavam de impedir o avanço da humanidade.O mesmo Marx se referia frequentemente ao cretinismo do campo e muitos comunistas ao cretinismo do camponês polaco e de outras regiões da Europa.Mas não só os comunistas:certas correntes republicanas,muito em voga em Portugal.
Em termos políticos e sociológicos a visão da Virgem foi uma forma de criar uma agitação capaz de atrasar esta ilegítima intenção do governo português.O preconceito com o camponês permitia,aos olhos do governo,encontar um meio de eliminá-lo,com pompas militares.
Do ponto de vista filosófico e ético significou mais uma afirmação daquilo que eu disse acima,junto com Freud e outros(Kierkegaard):que o mistério ,o não-saber ,a ignorância ,a superstição  são mais ricos do que a Razão,até porque sem eles não se busca o conhecimento.
A questão ética e politica da afirmação da ministra é um caso à parte.Mas dentro de uma escala de possibilidades  implica numa constatação que muita gente da esquerda não entende:a democracia vale também para a Igreja Católica;o estado de direito também e que é um pouco forçado culpá-la de tudo o que há de ruim.
Eu adoro meu mestre Leonardo Boff e reconheço que muitas das suas críticas à Igreja Católica são válidas,mas assiste razão ao Cardeal Ratzinger em dizer a ele e à teologia da libertação:Se não querem mais ficar na Igreja ,fundem outra religião.Não quero dizer que Boff tenha feito isto,mas é fácil conseguir um nome provocando a Igreja.
A minha ética aqui nestes artigos é produzir um conhecimento,não um nome a partir de um escândalo.Fiz e vou fazer muitas críticas à Igreja e a tudo o que houver para criticar,mas o nome que eu adquirir derivará do valor do que eu produzo,não do escândalo.
Por acaso só existe pedofilia na Igreja?.Só o catolicismo comete erros e crimes?.
O que a esquerda não entende é que ao atacar a Igreja supõe que  a Razão,pela sua verdade,será capaz de diluir todo o seu mau exemplo,mas a Igreja é um sexto da humanidade e já demonstrou aptidão excepcional para reagir.
Se alguns aí passassem da orelha do “ Capital”,nós não passaríamos por isto.Ninguém tem certeza de nada,o mistério é inerente à existência humana e uma sua condição.Nem a razão tem a condição absoluta da certeza.

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quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

Análise de conjuntura poucos dias antes da posse.


A análise política não é igual à análise historiográfica.Nesta última a prova concreta das assertivas é mais do que exigível.Na análise da política,na análise de conjuntura,o termo de responsabilidade se adequa a eventuais hipóteses,notadamente quando o cidadão se vê diante de problemas com os quais tem um contato apenas superficial.Toda a sua investigação se dá pelo que ele tem à disposição pela mídia em geral.
Sem querer fazer nenhum tipo de consideração ética sobre esta mídia(não adiantaria nada),e se mantendo no nível dos dados ,tomar uma decisão sobre fatos é muito difícil para um cidadão ,como eu,que tem o direito de participar e opinar sobre os acontecimentos políticos.Porque o cidadão(eu) vota(-o) e paga(-o) imposto.
Em um  livro famoso,”Parlamento e governo numa Alemanha reconstruída”,Max Weber mostra como os discursos políticos obedecem a determinados objetivos e interesses e como devem ter uma lógica,para possuírem,pelo menos,um laivo de legitimidade e autenticidade.Esta autencidade é suficiente para considerar os discursos políticos ,as linhas políticas que jogam um papel,ainda que hipotético, no campo dinâmico da sociedade política,porque elas ,no mínimo,têm o potencial de intervenção social,ainda que no plano de poucas consciências e grupos.Muitos dos meus leitores deviam ler isto quinhentas vezes antes de me criticar...
Pois.Percebi desde o inicio do avanço da direita(muito antes de Safatle)que ela era e é um arquipélago de intenções não necessariamente articuladas,harmonizadas.Não sei se esta afirmação é verdadeira ,mas como eu disse antes,tem um certo peso na conjuntura.
O exemplo disto aí é a relação da Rede Globo com o Presidente eleito,que se dá na escolha do ex-Juiz Sérgio Moro para  super-ministro da justiça.É notório que a Rede Globo lança todas as suas fichas no ex-juiz.Há meses atrás a cerimônia de concessão de título de doutor Honoris Causa ,nos Estados Unidos,mereceu extensa promoção na programação.Levando em conta que é muito dificil de acreditar que uma emissora com tantos compromissos vá promover uma pessoa só por suas qualidades(conduta que não tem guarida na vida pública brasileira),estas homenagens não podem deixar de ter um propósito.
Ora ,se o Presidente eleito escolheu o ex-juiz livremente,como é de seu direito e da necessidade do país,a Globo não interfere no seu governo,que aparentemente,sofre,por parte dela ,uma já oposição cerrada(diferentemente do que aconteceu com Collor,apoiado de inicio,mas depois rejeitado).Mas se a Globo se beneficiou desta escolha,das duas uma:ou ela a impôs ao futuro Presidente ou ambos,de comum acordo,decidiram.
Lógico que isto tem consequências evidentes:se ela impôs o Presidente já vem enfraquecido por um poder privado;se foi comum acordo existe uma articulação e uma ocultação cínica de interesses coligados,para jogar areia nos olhos do povo brasileiro(eu também),que põe em risco a democracia e as instituições nacionais.Quero respostas para estas perguntas.
Como eu me referira aos governos de Getúlio( o segundo) e João Goulart,a falta de autoridade do chefe do executivo,que se manifesta no questionamento de suas escolhas ministeriais,é antecâmara de soluções de força.
Daqui por diante tudo o que eu dissesse seria ,aí sim,mera especulação:muita gente diz que o atentado ao candidato vitorioso foi armado e eu não acolho esta “tese”.Mas existem pessoas que popularizam teorias conspiratórias e vendem idéias de uma articulação ampla ,fundada em ocultações propositais para ludibriar o povo brasileiro.E eu só dou seguimento a isto para mostrar os impasses de um tipo de política que ,sem programa,acaba por por em perigo o próprio país,como já o fizera no primeiro governo Lula,que usava subterfúgios na elaboração dos ministérios,coisa que escondia ,sob suposta habilidade,a falta de propostas.
A especulação de que os super-ministérios é uma solução autoritária de quem não tem muitos conhecimentos específicos e vai atuar como um magistrado/presidente,um orientador,mais que um chefe de executivo,também cresce por aí,nas redes.Assume,neste caso,importância o modo como Paulo Guedes pretendeu “ negociar” as primeiras medidas do inicio do governo,no plano da economia,sem dizer nada ,fazendo só um apelo emocionado...
Enfim este artigo é uma grande hipótese,que tem efetividade ,ao menos,como pressão para que as coisas não sejam assim.