Amigos,nós
sempre tivemos contato,pelo cinema,de obras escatológicas de
fim-de-mundo,em que heróis solitários salvam a
humanidade.Outro dia me lembrei de um filme com Charlton Heston,de
1970 se não me engano,no qual,pouco depois de Woodstock ocorre
um holocausto nuclear que deforma alguns seres humanos e deixa
outros,como ele,intacto,para tentar a reeducação da
humanidade,pelos meios de que dispõe,às vezes
violentos.Mas no filme ,a mensagem é cristã,de
sacrifício pessoal do herói que ,com isso,redime de
novo a humanidade.
Cá
com os meus botões,há muitos anos apreciador de
Shakespeare,adorava Hamlet como o maior dos seus traballhos.Isto até
ao momento em que pude assistir com atenção ao Rei Lear
de Peter Brook,com Paul Scofield no papel principal.
Anos
depois ,a versão de Kurosawa,Ran,me fez esquecer o Hamlet e me
tornar um obsessivo estudioso de Rei Lear,que eu considero a maior
obra já feita pela humanidade e digo porquê:
Se todos
conhecem a estória, Lear,velho senil de 88 anos quer se
aposentar e chama as filhas para dividir o reino e aproveitar a sua
velhice indo de um lugar para outro,de uma casa das filhas para
outra.
A filha
preferida Cordélia,quando vê o plano do pai e como ele
divide as suas posses,recusa e o critica,sendo por ele expulso.As
duas outras filhas o bajulam,recebem o quinhão ,mas depois
rejeitam o pai pelos mesmos motivos políticos pelos quais o
velho usou de violência e brutalidade.
Em face
deste erro,que lhe é revelado paulatinamente pelo Bobo,grande
e imortal personagem da humanidade,ele enlouquece,o que é
representado na figura abaixo.
Pode
haver maior síntese da humanidade do que este périplo
pessoal,que põe um pai diante de seus erros passados,erros
representados pela atitude das filhas ,educadas,afinal,por ele
mesmo?Pode haver teatro pedagógico maior do que este?
Antes de
tecer as minhas considerações gostaria de colocar uma
premissa metodológica:
A
crítica Barbara Heliodora uma vez disse ,seguindo os
parâmetros de toda boa dissertação que a coisa
que ela mais detestava nos críticos em geral e particularmente
nos de Shakespeare era o fato de falarem mais do que ele tinha
dito,isto é,tirar dos textos mais do que havia.
Eu quero
me colocar numa posição favorável a uma
hermenêutica mais ampla e livre, alegando para isso ,o fato
extraordinário de que o texto aqui em questão,como
outros,apresenta inúmeras possibilidades e levando e conta o
impacto do poeta na humanidade,é possível,na sua
leitura ,separar o que está no texto do que é uma
consequência do seu pensamento.
Dou um
exemplo com a súmula que eu fiz no inicio:como não
tirar um sentido pedagógico amplo da contraposição
do Rei Lear com as filhas?Como não pensar nas inúmeras
possibilidades deste evidente contraste entre o rei e a filha que diz
a verdade e as que ,bajulando-o, acabam por traí-lo?Não
foi acaso ele que as ensinou?
Toda a
peça apresenta a verdade de que este rei senil precisa antes
de morrer aprender a ser algo diferente do que ele foi a vida
inteira,talvez o quê?Ser homem?Nisto não estaria
embutida a sua crueldade?Que tipo de homem?Que tipo de pessoa?Ora
,este projeto individual acaso não vale para a humanidade como
um todo?Isto já não é uma
interpretação?Certamente Shakespeare pensou nisso,mas
ele não abarcaria todos os homens,antes deixou os paradigmas
de uma reforma da humanidade,no sentido de sair da crueldade ,da
falsidade,para o bem e a verdade.
É
aí que se conecta o estudo deste texto com o que eu disse
inicialmente.
Se algum
dia a humanidade desaparecer numa guerra total,visitantes
extraterrestres poderão recompor o que a humanidade
foi(é?)lendo esta obra de shakespeare.
Voltarei
ao tema.