quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Nous sommes tous Charlie



Diante  dos  fatos  ocorridos  na  França  ,que  ferem  o  conceito  que temos  de liberdade,mudei  a  minha  programação  para  hoje  e  resolvi tratar  deste  assunto.Aliás  quero  fazer  um  artigo    bastante  tempo,motivado  que fui  pela  frase, de  muitos  anos atrás,  de Berlusconni,que  disse que a  democracia  ocidental  era  superior.
Apesar  da  ojeriza  pelo  personagem,na  época  eu  tive  que  concordar  com ele e quando,em  muitos  lugares  eu  a defendi ,fui  taxado de  nazista,por  considerar-me  moralmente  superior  ao  mundo  muçulmano.
Prosper  Merimèe,o  auto de  “ Carmen”,no  século XIX,em  seu  prefácio  ao seu  livro  “ Crônica  do  Reinado  de Carlos  IX”( o  da  noite de  São   Bartolomeu),alertava  aos  europeus  quanto  ao  fato de julgarem  os turcos,os  orientais  e  sarracenos ,  segundo  os  seus  valores  e finalizava  dizendo  que o  que  pode  parecer justo  para nós  não  o é para os  outros.
Por  este  princípio  é  normal aceitar  torturas numa  sociedade mesmo  que  para  nós  não  seja  admissível  como  direito  humano.
A  problemática  dos  direitos  humanos  universais  surge,como sabemos,na  conjuntura  da  Revolução  Francesa,que criou  uma    comunidade universal  humana”  com a “declaração  dos  direitos  do  homem  e do  cidadão”.
Kant  foi  o  grande  teorizador  desta  comunidade  universal em filosofia,estabelecendo-lhe  os  fundamentos  ,segundo  os  quais  seriam  válidos  para  todos  os  homens.Lembremos  também a  Declaração  de  Independência  dos  Estados  Unidos,” Nós  o  povo  acreditamos  que  os  homens  foram  dotados pelo  criador...”todos  os  homens,não    os  americanos.
A  realidade,como sabemos,  também  não  é assim ,porque  muitos  povos    reinvidicam direitos  que   nada têm a ver  com  esta  comunidade e  usam  inclusive  o  direito  democrático  de  pensar  diferente para  julgar e  condenar mulheres  adúlteras  ou  proibir  partidos laicos  em  sociedades  teocráticas.
Eu  não  vou  repetir aqui  as  inúmeras  discussões  que  fazemos  na universidade  sobre  as  balizas pensamentais  de Kant,mas  com  base nestes  pródromos  eu  quero emitir  a  minha  opinião  sobre  o  atentado  de ontem  em Paris.
Se  eu  fosse  uma  mulher   eu   poderia  me  enganar  e  casar  com  Berlusconi ,mas  teria  a chance  de,pelo  divórcio,me  separar(rapidamente)dele.Se eu  fosse  uma  mulher muçulmana eu seria  condenada  à  morte  ,a  menos  que  fosse  tentar a  vida  na  periferia de Paris,casando com  um  homem que  vivesse  lá.
Deixemos  de  conversa  fiada ,esta  é  a  realidade  do  termo  liberdade,  para além  das  discussões  complexas.
Eu  não acho  certo  exibir   na  hora  do  jantar  a  famosa  fellatio  de “ Caligula”,mas na  madrugada  sim.
Nos  dias  que  correm em que  não há  argumentos,mas    imagens,isto é,quem aparece na  mídia  é que é  importante,e não  quem  tem conteúdo,se  alguém  é  mostrado,  todos  devem  ter  o  direito  de  sê-lo  também.Sem  pré-condições  eu  quero  dizer.
Uma  eleição  às vezes  é  ganha    porque  alguém  aparece  neste  ou  naquele  veículo de mídia.Eu  quero ter  os  mesmos  direitos.
Não é  admissível , por  eu  ser  de  um pensamento  diferente  da  religião  muçulmana,eu  entrar  na  casa  de um crente  para  roubar  a  mulher  dele ou  fazer  outra coisa  contra  os  seus princípios.
Mas nós  sabemos  que o  princípio da  liberdade  radica  no indivíduo  e este  tem  opiniões  divergentes  quanto a  qualquer  assunto.Em  qualquer  regime,em  qualquer  religião ou  sociedade  não existe  aceitação  absoluta,no  lugar e  no tempo.Deixemos  de  especulações  abstratas.A  verdade  é  esta.
O  problema  da  liberdade  apareceu  na  humanidade quando este  indivíduo  que  se alça  por  sobre povos  e nações  não  queria  mais  ser  conduzido  por  sistemas de poder,quaisquer  que  fossem:turcos,ocidentais e  assim  por  diante.
A  mentalidade  religiosa  em todas  as épocas  trabalha  sobre o princípio  da intocabilidade eterna  dos seus  valores.Se  ela  decide  ninguém  pode tocar.O  princípio  da intocabilidade,do  dogma  está  posto  antiteticamente  diante  da democracia e  da  liberdade.
Não  se  trata  só de  religião.No  stalinismo  quanta  gente não  foi presa  e  morta  por  causa  da  dissensão  em relação  ao  partido  único,tido  como dogma  do    socialismo  científico”.Este  tipo de atitude   ,em  meio a liturgias  politicas,demonstra  a  permanência  da  religião neste  sentido  de intocabilidade na  consciência  de  todos  ,inclusive  daqueles que  se dizem  contra  ela ou  que  não  a seguem.
O  certo é  que  o dogma  sagrado,o  sacer não se  coaduna  com a liberdade.A  construção  do  sagrado ,a  partir  das  datas  a  que eu  me referi  acima,tem  que  ser  uma  construção  responsável,mas  uma reconstrução  permanente,como uma  constituição,cujas  bases  podem ser ,inclusive,  mudadas.
Os  integristas  ,do tipo  que  mataram  os  cartunistas,do  tipo  judeu  que  matou  Rábin,acusam  esta  atitude  de  tornar  o  homem  um vendido,um  prostituto  axiológico,que  não  tem  raízes  fincadas em  nada e ,pior,para  estes integristas  ,estes  vendilhões  se  sentem  superiores  ,como Berlusconi.
A  raiz  moderna  deste  atentado  é esta:”  eles  se  sentem  melhores  do  que  nós  por  isso nos  ridicularizam”.”nós  estamos s endo  atingidos  em  nossa  intimidade”.
Sempre  aprendi  que  o sentimento religioso,a  fé,faz  parte da intimidade e ,por isso,é  intocável.Meu  pai  stalinista dizia :“nunca  ridicularize  o sentimento  religioso,argumente”.
Eu  ficava  pensando:”  mas  e  os  valores  transmitidos  por  esta  fé?Não seriam  beneficiados,inclusive,em  eventuais interesses  políticos,por  esta  intocabilidade?”Dizer  que a  religião  é  indiscutível  não  é  um perigo?
Uma  vez  o  Pasquim,na  década  de  70 ,colocou  a  história sagrada de Jesus,no  mundo  animal,precisamente  como seria  entre  os porcos.Ao  aparecer  na edição na  banca de jornais  o  jurista  ultra-católico Sobral Pinto  mandou  uma  carta  se  sentindo  ofendido  e  disposto  a  processar o  jornal que,anos  antes,  o  havia  entrevistado.
A  violação  da  intimidade  não  é  mostrar  a sagrada  família deste  modo,mas impedir alguém de professar a  sua fé.
Chamar  alguém  de viado é  afirmar ,quando  ele  não  assume,a  sua desonestidade,é  chamá-lo de  desonesto.Isto é  violação.Fazer  piada  com  gays  não.
A  capacidade  humana  de discernir,de  analisar e  argumentar é  a salvação  para  todo  este  retorno à  Idade  Média  que  vemos.Para  mim  aquele  que  impõe  um casamento,por  causa  de um  dogma,contra  a vontade  do  outro,que  não é  ouvido,é  inferior  a  mim,Ernesto  Maggiotto  Caxeiro,que  não  impõe  e sabe  argumentar.Aprendi  isto  quando  li  “Os  Miseráveis”  de  Vitor  Hugo,o qual,na  personagem Cosette,revela  como  a  lei era  um  dogma,porque  não  tinha  espaço  para  ouvir  o  lado da menina,que  morre  tuberculosa num asilo,sem ajuda.
Portanto,algumas consclusões  são importantes:não existe  dogma,mas  pródromos;tudo é argumento  e  discussão e  a liberdade  se identifica com estes  dois  conceitos.E  que  a  superioridade  entre  mim e  berlusconi  e um muçulmano e  sua esposa  é  o direito de divergir.Isto  para  mim  é intocável.Eu  posso  duvidar  de tudo,menos  da  dúvida.O  cogito de Descartes é o  começo da  civilização.

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